OS BATUQUEIROS: O primeiro e último bloco escola de samba de carnaval formado por crianças de Apodi

Surgido em Apodi (1972) uma iniciativa da turma dos meninos levados da rua Nossa Senhora da Conceição.

Em pé, da esquerda para direita em primeiro plano: 1º Menino de óculos preto, não identificado. 2º Edinésio de Nenen Tonico. 3º Menina de roupa preta, não membro do bloco, é Erileuza, irmã de Edinésio. 4º Nenen de Mário de Gogó, portando boné branco. 5º ao centro, de cabelos castanhos e volumoso provavelmente Dudu de Dantas (?). 6º Neto de Mário de Gogó (?). 7º Tico de João de Quincas, com chapéu/peruca comprida loira e, ao seu lado, menino com camisa aberta cor branca é desconhecido e, logo em seguida, com os braços cruzados ao peito é Dorian de Zé da Carritela, não fazia parte do bloco, e os demais não se sabe quem são. Sentados, da esquerda para direita: Celino de Iran, ao centro com cantil é Nurim de Bugue e o 3º Toni de Luís Freire (sobrinho de Tico). Fotografia captada na quadra da ACDA, matinê de carnaval das crianças.

Os Batuqueiros foi o primeiro e último bloco (escola de samba) de carnaval formado por crianças com fantasias iguais para os componentes, surgido em Apodi (1972) uma iniciativa da turma dos meninos levados da rua Nossa Senhora da Conceição centro seguindo uma tradição apodiense vinda dos anos 50 e 60 dos vários grupos de foliões adultos já existentes, tais como: Os Archetieros, Os Milionários, Os Flagelados, Os Dragões, Os Diferentes, Os Árabes, Os Matracas e Arca do Samba, nos anos setenta, formados por crianças e adolescentes: Os Desconhecidos (organizador Galego de Taninha), Os Garotos (org. Gilvan de Philastro/Jorge de Niná), Os Setes Batuques (org. filhos de dona Amália do hotel, já rapazotes) e Os Metralhas (com adolescentes e rapazotes, organizado por Seu Tonho de Robson/Chico de Chico Paulo) e outras turmas que vieram no decorrer do tempo surgindo e desaparecendo para curtir os quatro dias de reinado do momo. Vale ressaltar que existiu também os blocos de salão das mulheres, rememoro – O Bafo da Onça e As Tropicálias. Daí pode-se afirmar que o carnaval de Apodi, nos primórdios, foram os populares adultos e jovens que soergueram essa grande festa do que é hoje em termos de região.

A meninada do meu tempo, formadores do bloco carnavalesco, éramos: Nurim de Bugue (quem vos escreve), Nilson de João Lucas, Celino de Iran, Dinda de Socorro Moraes (in memoriam), Tico de João de Quincas, Edinésio e Cidim de Neném Tônico, Dudu de Dantas

(foi o primeiro mascote), Bililica de Dantas (o segundo mascote substituindo seu irmão Dudu) e Nenen de Mário de Gogó. Depois ingressaram outros componentes, se relembram de Seu Tonho de Robson, Nilton Torres, Fredy de Luzia de Raimundo da Luz, Toni de Luis Freire, Galego de Vancir, Jaime de Zé de Chico Pedro, Neto de Bevenuto Fogueteiro, Laércio de Du, Agostinho de Newton Pinto, Vandinho de Altino, Paulo de Hildo, Wilson de Zé Bolacha e Clayton de Tião Pinto, e tantos outros. Vale citar as duas meninas, Cesina de Iran e Alcineide de Atanan, ditas mascotes que chamavam a atenção por sambarem na frente do bloco. Os Batuqueiros não varou a década de 70, extinguiu-se, provavelmente em 1977. Fui residir em Natal em 1974, brinquei só uns dois ou três anos, mas os Batuqueiros foi uma espécie de escola que servia de preparatório de seus membros para ingressarem nas escolas de samba dos adultos, como Os Diferentes, Árabes etc.

Comprávamos roupas de chita, um tipo de tecido mais fraco existente e, por conseguinte, o mais barato, principalmente na loja de João Lucas, situada na rua Cel. João de Brito e ou nas de Joel Câmara e João Custódio. Ainda lembro da camisa de chita, cor branca e umas bolinhas vermelhas e com o calção também de cor totalmente vermelha, foi a primeira fantasia padronizada que tivemos. Para termos o dinheiro para tanto, investíamos na compra de um pequeno porco – bacurim, para na véspera do carnaval vender o quadrúpede suíno, já gordo, por um bom dinheiro. Não sei de quem foi a brilhante ideia que funcionava muito bem, se foi de Nenen de Mário de Gogó já que seu pai criava suínos no seu quintal e era um bom investimento a longo prazo, os marchantes (açougueiros) da cidade tinham interesses e pagavam na hora.

Isso mesmo, criávamos todo ano e botávamos para engorda. Comprávamos logo após o término do carnaval, levantávamos o primeiro montante, inicial de capital, para investir no bacurim, fazendo rifas de cerveja, lata de doce e de galinha. Vendíamos esse tipo de loteria baseado no jogo do bicho com 24 assinaturas na escolha do número e com data a ser sorteada aprazada. Lembro-me ainda que vendemos rifa de uma cerveja antártica e quem ganhou foi o gerente, início dos anos 70, da cooperativa que funcionava na rua N. Sra da Conceição – Usair Barreto, embora houvesse muita tentação, mas o produto era entregue para não perdemos a credibilidade de vez.

No chiqueiro do muro (quintal) da casa de Mário de Gogó juntava o nosso animal com os demais dele e todo dia levávamos “lavagem de porco” (sobra de comidas) das casas dos pais dos membros do bloco, com objetivo de engordar o suíno para quando próximo ao carnaval se vender e comprar a fantasia da turma, lembro-me que o resto de comida mais disputada “apetitosa, substanciosa” para o bacurim, claro, era da casa do professor Robson Lopes. Ás vezes deixávamos, por preguiça, de levar a comida ao animal e as famílias reclamavam e ameaçava em dar para outra pessoa que não deixasse acumular exalando fedentina e assim retornávamos a ir buscá-la dando continuidade a faina. Quando descuidávamos de levar diariamente a comida do porco, Mário tratava do animal e quando estava gordo ele vendia e repassava outro menos gordo para nós, e assim éramos ludibriados, mas ao mesmo tempo ele nos recompensava, cuidava dando também víveres para todos os animais no seu criatório. Outra tática astuciosa da molecada era de juntar membros do bloco e durante o dia da feira, sábado, cheio de vendedores de cereais e legumes que se estabeleciam tanto dentro como nos arredores do mercado público, com seus caixotes e sacas de milho expostas com a boca aberta, à venda no retalho e na cuia, era de mancomunados, formando uma fila espaçada entre um e outro, passávamo-nos rente aos baús e sacas e, cada, pegava rapidamente um punhado de milho e

assim íamos juntando e enchendo a vasilha nossa terminando com vários quilos e levávamos para dá ao porco.

Outra artimanha arquitetada pelo negro de Mário de Gogó (era assim como o tratávamos Nenen sem racismo, eu era conhecido também pelo o negro de Bugue) era irmos no depósito de mercadorias, aos fundos da casa do político Bevenuto Paiva (ex vereador, vice-Prefeito), fazendeiro latifundiário bem-sucedido economicamente, exportador de produtos regionais para Fortaleza, tais como couro de bode curtido, cera de carnaúba dentre outros. Aos fundos da casa de morada da praça da Redenção tinha pequeno prédio de alvenaria e as paredes não eram rebocadas, com isso próximo ao portal com porta de madeira foi escavado o barro do rejunte dos tijolos e posto um pedaço de tijolo de mesma cor tampando o buraco encobrindo o mal feito que através do mesmo se enfiava a mão e desaferrolhava a tramela e assim abríamos a porta pelo lado de fora, adentrávamos, de preferência à noite, com a rua sem movimento de gente e escolhíamos os couros amontoados pelo chão. A quebra da boa conduta vez por outra estava feito, quase perfeito!

O objetivo de surrupiar as peças de couros curtido de bode era para botar em nosso tarol, bombo e surdo. Estes feitos artesanalmente de tambores cilíndricos de fermentos adquiridos nas padarias. A prática utilizada para pôr o couro no bombo era, depois de molhado e seco, esticava sobre a boca do bombo e colocava uma moldura de ferro, presilha circular para imprensar, manter o couro bem teso, mantido seguros com tarraxas bem apertadas. Se procedia como rotina constante para permanecer com o couro dos surdos aquecidos o uso do fogo da queima do álcool numa frigideira e levava o instrumento próximo do fogareiro improvisado até ficar com um som estridente sobre o contato da baqueta.

Quanto as tintas para pintarmos os instrumentos musicais, se contava com mais uma astúcia de tirar as coisas do seu devido lugar e mudando de dono, entrávamos sorrateiramente nas oficinas de pintura de automóveis (lanternagem) e eram cheias de latas com os líquidos de variadas cores espalhadas pelos cantos das paredes, mal os donos e trabalhadores não percebiam se usurpava as latas contendo pouca tinta e também até cheias lacradas. As que tinham poucas tintas misturávamos uma com as outras formando uma nova cor com quantidade de volume suficiente para pintar todos os instrumentos. Mais uma traquinagem de subtrair do que era alheio e repudiável aos olhos do nossos pais, o medo de levar uma surra não era cálculo pensado, mas a vontade de botar o bloco na rua, sem condições financeiras, não se media a distância do que era certo ou errado. As vítimas que perderam suas latas de tintas sem saberem para quem – Jacinto, Edmilson e Dudu. Com as tintas também nos tornamos grafiteiros, pois fazíamos escritos garrafais em muros, paredes e calçadas a partir de cartaz com letras vazadas (de cartolina emendadas), com o nome – OS BATUQUEIROS ANO 72, e assim respectivamente para cada ano de carnaval a festejar. Até certo tempo ainda existia uma pintura dessas na ponte da estrada BR 405.

Tínhamos como relíquia um pequeno surdo de metal, tipo tamborim, de fábrica, instrumento de percussão subtraído de um circo armado entre o posto de gasolina Brasília (de Chico Paulo) e a casa do fiscal de renda seu Zacarias, espaço em que depois foi construído o prédio da Telern. A história dessa peça foi assim, Nenen de Mário Gogó e Mosquito de Chico Tito (outro menino cheio das artes das trampolinagens, embora não membro do bloco, mas se juntava para tais travessuras), acho que foram os idealizadores da empreitada e corajosos por dá novo destino a tal peça de utilidade daquela casa de espetáculo circense adentrando naquele

recinto cercado com dez fios de arame farpado sem serem vistos. O fato coincidiu de uma música internacional fazendo sucesso que soava o refrão no português se poderia cantar assim: “hein cadê meu tamborim, tamborim, tamborim…” O episódio não foi tão tranquilo, se rendeu o que falar e investigação por parte do dono do circo para chegar ao autor da infração. Lembrou-nos Tico de João de Quincas. Ainda, ressaltou Celino de Iran mais um capítulo que teve os dedos de Nenen e Mosquito foi a subtração do surdo retirado as escondidas do bloco Os Flagelados do Samba, na época a sede estabelecida era no antigo prédio do cinema Odeon, da rua João Pessoa, não foi barato esse barato, foi outra novela. Nem sempre as empreitadas sortílegas davam certo.

Os poucos instrumentos tipo de escola de samba, de percussão, bombo, surdo, tarol (caixa repique), tamborim, chocalho, ganzá, frigideira, triangulo e reco-reco, do nosso bloco, eram guardados num tanque d’água de alvenaria, em desuso, no quintal da casa do dentista Bugue, pai de Nurim. Passavam a maior parte do ano lá, esquecidos, para depois na véspera do carnaval se retirar todo empoeirado e começar a preparar os instrumentos para os ensaios, como era o costume da época, os meninos copiavam dos blocos dos adultos os estilos das fantasias, as pinturas dos instrumentos musicais e até os ensaios que aconteciam alguns dias antes do evento do carnaval. A situação era precária para se ter os instrumentos iguais aos dos blocos dos adultos, o pai de Dudu e Bililica, funileiro no ramo de fabrico de lamparinas improvisou o nosso chocalho soldando duas lamparinas e o ganzá, confeccionado de lata de óleo de comida.

Um fato interessante, naquele tempo os blocos de carnaval tinham tradição de enviar uma carta a um dono de casa de família para se fazer uma espécie de assalto carnavalesco previamente agendado (visita, onde a casa dava bebidas e tira-gostos, no nosso caso eram expostos sucos, refrigerantes e comidas), a mais almejada era da dona do cartório Maria de Abília, Alfeu Pinto, Nenen Tonico, Gracinha Sizenando e numa dessa recepção aconteceu de uma das frigideiras usadas como instrumento que foi achada no lixão da barragem que existia nos fundos da cooperativa e do atual Banco do Brasil, mesmo estando pintada, fomos recebidos na casa paroquial pelo padre Pedro Neefs, e quando paramos de tocar e pomos alguns instrumentos em cima da mesa foi reconhecida a frigideira pela serviçal da casa, dono Nem Lúcio, que a tal frigideira era a que ela tinha posta no lixo e logo disse – “tire de cima da mesa que estava no lixo!” Foi dito em alto e bom som me deixando acanhado e sem jeito. Frigideira para se usar como instrumento em escola de samba era cara e difícil de se encontrar, fazíamos das tripas coração para termos o nosso acanhado acervo de utensílio musical.

Dentre inúmeras recordações do tempo ainda como crianças e depois já crescidos, amadurecidos, se tem a dizer que nas tardes de matinês de carnaval da meninada no clube ACDA a orquestra de frevo dava um pequeno intervalo e o bloco das crianças fazia uma breve apresentação, entrava no recinto, dava uma volta no salão de dance e ao centro tocava uma batucada cantando um samba, repetia-se o que sucedia no baile à noite com os blocos dos adultos. Com os membros da turma aumentando, para acomodar os instrumentos se alugava quartinhos (pequenos prédios) e ou se usava das garagens das casas dos pais de algum componente, como de Nenen Tônico, Hildo da Torrefação. Nesta fase, promovia festas dançantes com contratação do conjunto musical Os Dominantes, do empresário Altino Dias, com venda de mesas e realizava-se na escola estadual Antônio Dantas, no centro da cidade. O entusiasmo de Nenen de Mário e Neto de Bevenuto à frente do bloco era de tal dedicação que até iniciativa de se construir a própria sede virou obsessão, para tanto se recolhia restolhos de obras como tijolos, telhas e até ajudando, em troca de material reutilizável, de demolição de casa. Era uma época em que o apodiense pensava, vivia o ano inteiro se preparando para a

grande festa das quatro noites e quatro dias de folia e animação. Velhos tempos que não voltam nunca mais.

Os dias antecedentes da festa do zé pereira já era uma alegria, rever todo mundo de férias escolar, a presença dos jovens estudantes secundaristas e universitários apodienses chegando das outras cidades, como irmanados com o mesmo objetivo – brincar o carnaval e depois comentar as resenhas das palhaçadas dos foliões, pois não faltava histriões a provocar risos com suas fantasias e máscaras no meio da multidão. Hoje, sinto pena pelas mudanças bruscas, acabou-se o carnaval com escolas de samba pelas ruas, do salão do clube com ornamentos nas paredes, dos confetes, das serpentinas e lantejoulas nas tardes de pândegas da orquestra a tocar frevos e marchinhas para as crianças, estas com máscaras, seus martelos de plástico, apito (língua de sogra), corneta berro e lança água, até o rei momo descaracterizou-se, a cidade cresceu e se perdeu o vínculo entre os conterrâneos de outrora. Hoje, ir participar do carnaval de Apodi do famoso “arrastão” é ficar perdido no meio da multidão atrás do trio elétrico.

Esses são os recortes como fotografias desbotadas que se tem de lembranças. Até os anos oitentas existia uma fotografia tipo monóculo, muito de uso na época, que foi tirada do bloco em dia de carnaval no quintal da casa de João de Quincas que depois foi extraviada, algo que seria mais uma recordação da infância da molecada do centro da cidade. Ó saudades, tempo doce e agridoce (já que nenhum mal feito é perfeito) pelos atos desconcertantes impetrados pelas crianças atropelando a razão, como o fim justificasse os meios, tão somente pelo prazer da folia pagã, espera-se, transcorridos 50 anos, que sejamos perdoados! Até por que quarta-feira de cinzas é o dia “da conversão, da mudança de vida, recordando a passageira, transitória, efêmera fragilidade da vida humana…”.

Natal, 18/05/2023.

Nurim de Bugue

Colaborou com informes, além dos citados no texto, Nenen de Mário Gogó com dados imprescindíveis, sem ele não teríamos relembrados de pormenores e outros fatos.

P.S.: depois do texto escrito apareceu mais dados:

1. O nome escolhido de Os Batuqueiros para a turma foi uma alternativa de Nurim, estivemos certo dia em reunião e cada um a dizer um nome e eu insistia que começasse com batu, batu… e só findava dizendo batuqueiro, como já existia uma escola de samba no Rio de Janeiro com este nome, não seria algo original, mas no final ficou Os Batuqueiros.

2. Já nos últimos anos do bloco, com as crianças transformando-se em adolescentes, nas visitas/assalto carnavalesco que se fazia a casa de João de Quincas, o suco oferecido continha uma certa pitada de cachaça que animava os moleques metidos a adultos.

3. O nosso bloco passava por uma pindaíba danada no início e diante do surgimento de outros blocos com a meninada com mais condições financeiras e com seus instrumentos de fábricas caíamos num sentimento de inveja e ciumeira, daí surgiu um refrão proferidos por nós como arma de vingança: “Garotos e Batuqueiros; Desconhecidos no chiqueiro!” Apenas sentimentos vãos de inferioridade. Dudu de Dantas nos trouxe esta do fundo do baú.

4. A oficina que vez por outra íamos fazer algum tipo de soldagem nos instrumentos era a de Edmilson.

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