O poder público e os prejuízos com o “super” El Niño

Os efeitos do atual fenômeno El Niño têm acarretado desastres alarmantes nos núcleos urbanos, onde se concentram mais de 80% da população brasileira (124,1 milhões de pessoas), e promovido impacto expressivo na agricultura.

Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil

Por meses os órgãos nacionais e internacionais responsáveis pelo monitoramento dos elementos oceânicos e atmosféricos, repercutidos em diversos meios de comunicação, têm alertado para os efeitos devastadores do evento El Niño sobre as regiões brasileiras e em outras partes do mundo. Há chances razoáveis que o El Niño em curso torne-se um evento “historicamente relevante” pelas graves consequências socioeconômicas, ambientais, climáticas e, sobretudo, porque sua atuação coincide com as dramáticas tensões econômicas, políticas e ambientais pelo mundo.

Os efeitos do atual fenômeno El Niño têm acarretado desastres alarmantes nos núcleos urbanos, onde se concentram mais de 80% da população brasileira (124,1 milhões de pessoas), e promovido impacto expressivo na agricultura. Os informativos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) apontam para o perigo quanto à segurança alimentar no planeta. Segundo a FAO, no início do episódio do El Niño atual, o mundo já contava com 258 milhões de pessoas em enfrentamento da fome aguda, número que deve aumentar com as restrições impostas por este episódio, potencializando as dinâmicas já aceleradas e intensas das alterações climáticas.

No Brasil, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) relatou que 5,8 milhões de pessoas foram afetadas por episódios de secas prolongadas, estiagem, tempestades e fortes chuvas apenas em 2023, causando prejuízos da ordem de R$ 50,5 bilhões de prejuízos ao país, que devem perdurar por pelo menos mais alguns anos.

O fenômeno El Niño corresponde ao aumento das temperaturas da superfície do mar nos setores central e oriental do Oceano Pacífico equatorial, também conhecido coma à fase quente do padrão climático da Oscilação Sul-El Niño (ENSO), em oposição à fase fria denominada La Niña. As periódicas flutuações associados às fases do ENSO, derivadas de interações dinâmicas entre o oceano e a atmosfera, alteram expressivamente o clima e o tempo na maioria das regiões do planeta, incluso o Brasil. A principal percepção das populações quanto a esse fenômeno global e seus efeitos locais ocorre quanto às variações significativas nos padrões de temperaturas do ar e das incidências de chuvas.

A métrica básica para avaliação do ENSO são as medições das médias contínuas da temperatura da superfície do mar nos setores central e leste do Pacífico equatorial, região localizada entre 5°N-5°S/170°W-120°W e conhecida como Niño 3.4. Esta região é usada na como referência em Meteorologia para definir a ocorrência e a intensidade dos eventos de El Niño e La Niña. Os resultados compõem o Índice Oceânico Niño 3.4 (ONI) e os eventos El Niño ou La Niña são definidos quando as temperaturas da superfície do mar na região Niño 3.4 excedem +/- 0,4°C por um período de três meses ou mais.

A Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) relatou ainda em Abril/2023 que os padrões de aquecimento da superfície do mar no Pacífico tropical indicavam potencial para um forte El Niño, fato confirmado com a chegada do El Niño em Junho, após três anos de domínio do evento La Niña. O recente boletim da NOAA indicou que o atual El Niño atingiu o limiar para ser considerado um evento “forte” ou “super” com 1,8°C acima da média de longo prazo (entre os anos de 1991–2020). Os episódios são classificados pela NOAA de acordo com o índice ONI em fraco (anomalia entre 0,5-0,9°C), moderado (anomalia entre 1,0-1,4°C), forte (anomalia entre 1,5- 1,9°C) e muito forte (anomalia entre ≥ 2°C).

Estudos da NOAA apontam a probabilidade de 62% para que o fenômeno persista com seus efeitos até Junho/2024, fato também estimado pela Organização Meteorológica Mundial. Os modelos, além disso, mostram a probabilidade de 35% para que este evento de El Niño atinja valores superiores a 2,0°C tornando-se, assim, por si mesmo um evento “historicamente forte”, fato ocorrido apenas quatro vezes nos 73 anos de medições disponíveis, entre os anos de 1972-73, 1982-83, 1997-98 e 2015-16.

Quanto mais forte o evento El Niño mais provável é a ocorrência de impactos quanto às mudanças nos padrões de temperatura do ar e chuvas pelo planeta, com a intensificação de seus riscos às comunidades locais, mais também à agricultura, tais como: tempestades, ressacas, alagamentos, inundações, deslizamentos, secas e estiagens prolongadas. Além disso, essas alterações de padrões e seus consequentes impactos são fatores que se somam aos números crescentes de eventos extremos, provenientes dos cenários tenebrosos atuais da emergência climática.

No início do mês de novembro, o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) alertou 2.707 municípios brasileiros das regiões Sudeste e Centro-Oeste para a ocorrência de ondas de calor com risco para a saúde, conformando na oitava onda de calor no país apenas em 2023. O órgão caracteriza como ondas de calor quando as temperaturas do ar mantêm-se, ao menos por cinco dias, 5°C acima da média esperada para o mês. Ainda segundo o INMET, baseado em medições obtidas pelas estações meteorológicas distribuídas pelo território brasileiro, as temperaturas do ar nos meses de Julho a Outubro ficaram 1,6ºC acima da média histórica climatológica, estabelecida como aquela entre os anos de 1991-2020. O cenário sugere que o ano de 2023 será o mais quente desde a década de 1960.

Os levantamentos do INMET mostraram que os volumes de chuvas incididas nas regiões Sul e Sudeste nos últimos meses, decorrência das combinações dos efeitos do El Niño com sistemas meteorológicos de frentes frias e baixas pressões, superaram a média histórica, causando alagamentos e inundações históricas, causando centenas de mortes, milhares de desabrigados e desalojados. Os dados da Defesa Civil, atualizados até a data de 20/Novembro, indicam mais de 8.500 pessoas desabrigadas e 7.527 pessoas desalojadas apenas nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O INMET emitiu recente alerta para temporais em 17 estados e o Distrito Federal, devido à entrada de uma frente fria vinda do sul, fato que agrava as condições já complexas da região sul que enfrenta problemas críticos de enfrentamento às enchentes e alagamentos provocados pelas chuvas intensas nas últimas semanas.

Ainda quanto à região Sul, uma comparação com os recordes obtidos no inverno passado com a colheita de 5,1 milhões de toneladas de trigo, os levantamentos da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) indicam a queda de 30,5% na safra deste ano, incluindo redução na qualidade de todos os tipos de grãos desta safra. Além desse fato, que o excesso de chuvas danifica e reduz a qualidade das plantações, também inviabiliza o acesso dos maquinários às lavouras e as ações apropriadas de armazenamento dos grãos, atrasando o período da colheita.

No Centro-Oeste, proeminente região produtora de soja, milho e algodão, houve expressivo aumento de temperatura e atrasos no período úmido, com expressiva irregularidade das chuvas, fatores que podem comprometer o desenvolvimento adequado das culturas. As altas temperaturas e as baixas umidades, diretamente correlacionadas aos efeitos do El Niño criam o ambiente favorável ao risco de incêndios, facilitando o alastramento do fogo.

Na região Nordeste, regularmente afetada por estiagens e secas severas, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEM) revelou 100 municípios em condição de seca severa devido às chuvas escassas e irregulares no último trimestre, o que já atinge cerca de 30% das áreas agrícolas e de pastagens, sendo que a falta de chuva deverá continuar até Janeiro/2024.

A Amazônia enfrenta seca e estiagem prolongada com 95% dos municípios já em situação de emergência, com crise no abastecimento de água e carência de alimentos, resultado da redução no nível d’água dos rios, que são as principais vias de transporte e locomoção na região, com elevada mortandade de diversas espécies de peixes, botos e outras espécies de animais da região. Estudos do CEMADEM já apontam que as temperaturas do ar nas regiões Norte e Nordeste devem ficar entre 0,5°C e 2,5°C acima da média no ano de 2024. Nas regiões Norte e Nordeste os cientistas têm destacado a possibilidade de um efeito combinado do fenômeno El Niño conectado ao aquecimento anômalo no Atlântico Tropical Norte, que aumenta as chuvas acima do Equador e reduz ainda mais as chuvas nessas regiões.

Portanto, o início do período de safra agrícola 2023-2024 no Brasil está afetado pelo episódio do “super” El Niño, fenômeno climático natural de escala global. Diante das preocupações com as fragilidades agrícolas em face da emergência climática, tais fatos alertam para a necessidade veemente de decisões do poder público quanto aos efeitos adversos do El Niño sobre as diferentes regiões do país, com foco evidente na segurança alimentar da população brasileira. Igualmente exige celeridade do poder público nas ações que promovam o aumento na resiliência das populações vulneráveis aos episódios climáticos e aos perigos e riscos da emergência climática.

Tais ações e investimentos não podem mais aguardar por deliberações burocráticas à mercê das decisões políticas e se configuram, entre outras: na melhoria contínua das capacidades nacionais e locais para o monitoramento ambiental (dos meios físicos, bióticos, climáticos, e outros); na elaboração de cenários previsionais detalhados, que são base para o planejamento de estratégias proativas de salvaguarda das populações e, inclusive, como fator de adequação de calendários agrícolas de plantio, irrigação e colheita; na avaliação detalhada dos fatores de risco decorrentes dos perigos da emergência climática na escala das localidades; a busca imediata por soluções de adaptação das infraestruturas urbanas, diante dos constantes e já corriqueiros panoramas de algamentos, enchentes, deslizamentos de terra e ondas de calor, que tendem à maior frequência e potencialização das ocorrências. Definitivamente, quando se trata dos efeitos danosos resultantes dos fenômenos como o ENSO e da emergência climática não devemos nos tornar impassíveis banalizando a perda de dignidade de comunidades inteiras expostas à fome, ao desabrigo e/ou desalojamento, muito menos permanecermos inertes diante da perda de uma única vida humana.

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