Empreendedorismo nas universidades: essa é a saída?

Percebe-se uma crescente glorificação do empreendedorismo em nossa sociedade como uma das grandes saídas para os problemas sociais.

Por César Sanson e Felipe Coelho*

A notícia de que a UFRN é a universidade mais empreendedora das regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste de acordo com a 4ª edição do Ranking de Universidades Empreendedoras, organizado pela Confederação Brasileira de Empresas Juniores (Brasil Júnior), deve ser saudada; porém, sobretudo, problematizada. Percebe-se uma crescente glorificação do empreendedorismo em nossa sociedade como uma das grandes saídas para os problemas sociais. É ainda mais inquietante o entusiasmo cada vez mais acrítico ao empreendedorismo nas universidades. A universidade como instituição social incorpora ideias hegemônicas na sociedade e as reproduz. Não surpreende, mas preocupa.

Devemos, porém, lembrar que a função primeira das universidades é a produção de conhecimento e formação humana orientadas pelo interesse social. Logo, a própria definição do objetivo de uma universidade é alvo de disputa constante no interior dessa sociedade. Não sendo um todo homogêneo, mas o reduto de conflitos entre grupos (e classes) com necessidades distintas e antagônicas, quais interesses deveriam ser priorizados pelas universidades? A resposta a essa questão revela o real projeto que conduz cada uma dessas instituições e o seu conjunto enquanto parte do Estado.

Aqui partimos de um ponto explícito: as universidades devem servir aos interesses da classe trabalhadora no conjunto de sua diversidade, do povo pobre, daquelas e daqueles que historicamente são oprimidos e tem o acesso negado às riquezas socialmente produzidas dia após dia. Para esses, a universidade empreendedora é a solução?

Retornemos às bases do que é o empreendedorismo para qualificarmos o debate. Elas situam-se em Locke que grosso modo sustenta a ideia – retomada na contemporaneidade por Margaret Thatcher – de que não existe sociedade, mas apenas indivíduos. Locke argumenta que a existência do indivíduo e da propriedade privada são anteriores à sociedade e ao Estado; logo, a liberdade da pessoa humana e o direito à propriedade privada não podem ser arbitradas por interesses coletivos e sociais. Posteriormente Adam Smith fundamentará economicamente a essa mesma ideia ao afirmar que o vínculo social não é resultante de um pacto social, mas produto de uma harmonia não intencional de interesses. Ou seja, a ideia de que cada indivíduo agindo na busca do seu interesse – self-love – acaba contribuindo sem querer para o bem comum. É a história da mão invisível do mercado.

O liberalismo, do qual o empreendedorismo é uma de suas ideologias mais sedutoras, parte, portanto, do pressuposto que o sucesso de uma pessoa, particularmente na vida laboral, depende apenas dos seus esforços, da sua perfomance, da sua vontade, de sua perseverança e de suas intuições visionárias. Associam-se a esse culto do esforço, outras palavras de ordem como autonomia, criatividade, polivalência, flexibilidade. Reside aqui a perversidade do discurso da meritocracia, a ideia de que você pode ser “melhor” em função unicamente dos seus esforços. Quando, diante de algum obstáculo – leia-se das desigualdades impostas às pessoas pobres, negras/negros, mulheres, LGBTI+, com deficiência dentre outros grupos – a “resiliência”, ou a capacidade de superar autonomamente qualquer uma dessas situações, é eleita como remédio universal.

O empreendedorismo, uma das vertentes do liberalismo, em sua fundamentação filosófica e econômica dispensa a mediação de instituições sociais de promoção do equilíbrio social. É ilusória a aposta no empreendedorismo – cada um por si – como enfrentamento às questões sociais e sobretudo no mercado do trabalho. Falar sobre empreendedorismo é o canto da sereia, quando vivemos em meio a uma brutal desigualdade social, marcado pelo racismo estrutural, patriarcado e o lugar periférico que ocupamos no capitalismo internacional. Empreendedorismo por aqui é muito menos o início de uma nova empresa e muito mais a última estratégia para parte da classe trabalhadora obter renda e sobreviver.

Ainda que guarde virtudes, como o reconhecimento da capacidade dos trabalhadores organizarem suas próprias atividades de trabalho, é preocupante o modo acrítico que esse discurso é tomado nas universidades. Assumir o empreendedorismo como saída para os problemas da classe trabalhadora é mascarar não apenas as raízes do desemprego e da miséria que nos encontramos, como jogar sobre os ombros de quem sofre a responsabilidade (e até culpa) por essa situação. Desemprego e pobreza são gerados por um modo de organização da nossa sociedade no qual o lucro está acima das vidas humanas.

Retornamos ao ponto inicial acerca do papel da educação pública em nosso país. As universidades públicas – das instituições de ensino privadas não se espera isso – devem se orientar acima de tudo por um projeto educacional que leve os seus formandos a uma consciência social de que a sua formação profissional tem um compromisso com a sociedade em que vivem, com a colaboração na redução da escandalosa desigualdade social.

Pode parecer clichê, mas antes de formar profissionais, uma universidade pública deve formar cidadãos que tenham como referência maior o protagonismo social do bem-estar da sociedade como um todo. Como destaca o professor Ladislau Dowbor, “sucesso individual não faz sentido se prejudica o bem-estar social”.

* Cesar Sanson é Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN

* Fellipe Coelho-Lima é Professor do Departamento de Psicologia da UFRN

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