Cidadania: direitos e deveres

O largo espectro da cidadania política encontra-se consubstanciado naquele que detém o poder originário – o povo.

Por Arnaldo Santos*

À extensão da história, as democracias das nações mais desenvolvidas se modernizaram paulatinamente e incorporaram múltiplos valores, objetivando a ampliação das garantias e dos direitos do cidadão, para o fortalecimento e a consolidação do que conhecemos hoje como cidadania, no sentido mais amplo do significado desse conceito.

Nessa contextura, o largo espectro da cidadania política encontra-se consubstanciado naquele que detém o poder originário – o povo. Em relação à democracia brasileira, é conhecido o cuidado que teve o legislador em reafirmar os princípios da igualdade de direitos e deveres na Constituição, que dedica o longo art. 5º, desdobrado em 78 incisos, parágrafos e letras, aos direitos individuais e coletivos dos cidadãos.

Embora o conceito de cidadania também incorpore os deveres, que as pessoas devem guardar e respeitar, ante o Estado e a coletividade, as referências feitas às obrigações correspondentes, a meu sentir, são difusas, como observamos em sua categorização, estimulando a que muitos se julguem desobrigados ao seu cumprimento, como faz o ‘presiMente’ da República, que se comporta como alguém que está acima da Constituição!

Notemos o que está determinado como deveres do cidadão: votar para escolher os governantes; cumprir as leis; educar e proteger seus semelhantes; proteger a natureza; e proteger o patrimônio público e social do País. Na cultura enfermiça que vivenciamos na realidade em curso, esses deveres são pouco ou quase nunca observados, inclusive pelo próprio Estado.

A confirmação do que estamos acentuando se materializa, por exemplo, com suporte no descaso do atual governo para com a população durante a crise sanitária gerada pela pandemia da covid-19, com um saldo de mais de 606 mil mortos, aumento exponencial do desemprego e da inflação, que empurrou milhões de brasileiros de volta aos lixões, assim como a destruição crescente do meio ambiente, com ênfase para as queimadas e o desmatamento ilegal da Amazônia, assassinato dos indígenas e das populações ribeirinhas, pela maneira desprezível com que o ‘presiMente’ age ante a Nação, desrespeitando os mais elementares fundamentos de convivência civilizatória.

Em uma sociedade de evolução morosa como a brasileira, cuja maioria é pouco letrada, e uma parcela substantiva da chamada elite “[…] é politicamente analfabeta, culturalmente ignorante e socialmente insensível” – trazendo em seu “DNA” a patologia do egoísmo e da superioridade, que a faz, na prática, agir como “[…] detentora de todos os direitos e quase nem um dever” – o resultado de tal comportamento provoca gangrena social e amputação do conceito de cidadania.

O modo pouco enfático, e até, de não responsabilização pelo descumprimento dos deveres, e obrigações, que as pessoas devem guardar para com os bens coletivos, especialmente por parte daqueles estratos formados pelos que se julgam superiores, a tudo e a todos, como o atual ‘presiMente’, conduz até os ditos “letrados, politizados e urbanos” a desprezarem o dever cívico cidadão de votar, com a liberdade que só a democracia assegura, mas também com a responsabilidade, e  o dever que se lhes impõe. Disso, o resultado e as consequências estamos vivenciando!

Preconceito, excludência, racismo estrutural, homofobia explícita e outras amputações sociais são extensões dessa deformação do conceito de cidadania. Por uma parte, tal sucede pelo elitismo predominante, e, de outro lado, porque os mandarins políticos do momento, e ou econômicos, não cumprem as leis. E, por padeceram de dupla ignorância, acham-se superiores a todo e qualquer regramento jurídico, como ocorrente até aqui – a título de exemplo, com o modo de governar de Jair Bolsonaro.

Por quaisquer ângulo que examinemos a nociva e incivilizada prática do desrespeito e do descumprimento dos deveres, verificamos que as razões têm origem na ausência de uma cultura de pertença entre as pessoas, manifesta com amparo no desprezo para com o que é exigido, com vistas à constituição a de um modelo civilizatório, e a internalização do valor que se deve guardar para com as regras de convivência estabelecidas para o conjunto de uma sociedade, dividida em classes, dando origem à enfermidade da falsa superioridade entre aqueles do “andar de cima”.

A amputação do conceito de cidadania, do lado dos que se julgam desobrigados do cumprimento de qualquer dever, se efetiva na usurpação dos direitos mais elementares pertencentes ao coletivo, comportamento que caracteriza a violência nossa de cada dia.

Quando examinamos esse problema no contexto das médias e grandes cidades, e extraímos como exemplo a mobilidade urbana – que trouxe em seu âmago uma reivindicação coletiva materializada na efetivação das faixas exclusivas para a prática do “bicicletar”; para a classe “superior” ou, simplesmente, “pedalar” para a maioria dos trabalhadores em deslocamento para o trabalho – constatamos esses desvios de conduta de modo ainda mais acentuado.

O mais estranho é observar o fato de boa parte daqueles que, no exercício legítimo dos seus direitos de cidadãos, pressionam o poder público para construir, com o dinheiro de todos, as ciclovias e ciclofaixas, serem os mesmos que estacionam seus carrões em cima das calçadas, impedindo o ir e vir dos pedestres, param em vagas exclusivas para cadeirantes e idosos, em filas duplas e, às vezes, triplas, nas  portas dos  colégios, para buscar os filhos, em flagrante descumprimento às leis de trânsito, que são igualmente dever de todos.

Nessa perspectiva, quando se olha para o fenômeno da endêmica corrupção no Brasil, onde, na realidade em curso, foi relativizada, vide a lei sancionada pelo presidente da República, na semana que passou, estabelecendo que, desde agora, para se punir qualquer agente público por corrupção, não basta apenas constar os desvios de conduta do agente, pois será  obrigado provar que houve a intenção de cometer o crime – quer dizer, houve dolo. Mais subjetivo é impossível!

Ante a nova realidade, afirma-se que ‘bolsominizaram’ a corrupção. Em outras palavras, aquisição de vacinas superfaturadas, se não ficar comprovado que o agente teve a intenção de compra-las acima do preço de mercado, não configura crime de corrupção. Nesse contexto de negação até dos crimes de corrupção, o que também se constata é a amputação do republicanismo, que deve ser fundado na ética política, e no dever moral, da obrigação individual e coletiva, de não roubar e não deixar roubar.

A Constituição, os Códigos Penal e Civil, que foram escritos para o cumprimento de todos, não se aplicam aos que governam o País, na realidade em curso, especialmente para o ‘presiMente’!

*Jornalista, sociólogo e doutor em Ciências Políticas. Comentários e críticas para: arnaldosantos13@live.com.

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